Afinal, qual país tem mais espécies de aves no mundo?

Há muito se discute qual país teria mais espécies de aves no planeta. É possível responder isso?

Recentemente, uma postagem do Clube de Observadores de Aves do Peru (COAP) ganhou certa notoriedade por divulgar que, supostamente, “o Peru se tornava oficialmente o país com mais aves no mundo”. Tradicionalmente, sempre se divulgou a Colômbia como o país mais rico em espécies. Para completar, o autor da postagem e outros defensores do feito peruano apontavam um artigo para embasar a declaração. Como foi, então, que o Peru teria superado o número de espécies colombianas?

Bom, tudo isso é uma grande confusão com números de fontes divergentes. Mas, antes de adentrar nos detalhes da resposta, vamos a algumas ideias gerais.

Como se compõe uma lista de espécies de um lugar?

O primeiro desafio é, obviamente, definir os limites geográficos desse lugar. Comumente adotam-se limites políticos artificiais (ex. países, estados/províncias/departamentos…), mas nem sempre é tão simples quanto parece. Quando os limites coincidem com o litoral, espécies vistas apenas na água entram? Até que distância? Ilhas distantes fazem parte do mesmo território? E quando o limite é um rio, por onde exatamente passa o limite? No centro do leito do rio? Mas como definir o meio, se as margens são variáveis de acordo com o regime de chuvas, etc.?[1] Uma ave que apenas sobrevoa marginalmente e a grande altura uma pequena porção de um território qualquer, sem pousar nele (e sem interagir biologicamente com qualquer organismo ou mesmo substrato desse território), faz parte desse território?[2]

Note que agora já estamos avançando sobre uma nova questão, para além da geografia: uma vez definidos os limites geográficos do lugar, quais os critérios de inclusão de uma espécie numa lista? Por definição, eles podem se referir tanto aos padrões de ocorrência (espaço-temporal) quanto aos tipos de registros. Em geral, a maioria dos autores aceita apenas registros documentados (por material físico ou mídia audiovisual) que permitam a verificação independente da identidade da espécie. Todavia, especialmente nas décadas de 1980 e 1990 (no Brasil), e até hoje particularmente para locais espacialmente mais restritos (e.g. áreas de proteção [Parques Nacionais etc.]; divisões políticas de terceiro nível ou abaixo), registros visuais eram/são aceitos como indicativos da ocorrência de uma determinada espécie em um determinado lugar. O Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos tem uma postura “intermediária”: são aceitas como parte da avifauna brasileira algumas poucas espécies desprovidas de documentação verificável (ou seja, registradas apenas visualmente) cuja ocorrência esteja de acordo com o padrão biogeográfico reconhecido para a espécie como um todo. Em outras palavras, se o registro brasileiro foi feito (implicitamente) num ambiente sabidamente utilizado pela espécie e numa mesma região geral de outros registros documentados da espécie, admite-se que o registro é fidedigno; se o registro contraria o conhecimento biogeográfico vigente, o registro é cautelosamente descartado, dada a sua improbabilidade.

Há ainda a questão de vagância das aves (e outros animais). Uma espécie cuja ocorrência num lugar seja conhecida por um único indivíduo que se perdeu e alcançou por acidente um determinado território (ainda que devidamente documentado), faz parte de sua avifauna? Ou somente populações (e não indivíduos) devem ser contabilizadas? E espécies introduzidas? Fugas de cativeiro? Indivíduos que chegam por acidente assistidos (involuntariamente) por navios ou outros meios de transporte?

Um sabiá-ruivo (Turdus iliacus), que naturalmente ocorre na Europa, Ásia e norte da África, aparentemente cruzou o Atlântico e pousou num navio em águas territoriais brasileiras. Deve ele ser considerado uma espécie brasileira por isso? Qual a chance de outros indivíduos aparecerem no Brasil? Por outro lado, em 1986, um atobá-australiano (Morus serrator) foi encontrado em Santa Catarina. Eu sempre me perguntei quando e especialmente se algum dia alguma outra pessoa encontraria um segundo indivíduo. Pra minha surpresa, não levou nem 40 anos para ser reencontrado no país (e novamente em Santa Catarina). E, sabendo que todas as comunidades biológicas mudam ao longo do tempo, até quando um registro histórico deve ser contabilizado? O trinta-réis-antártico (Sterna vittata) tem um único registro no Brasil, uma ave coletada há quase 150 anos por um barco em alto mar na divisa de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Deve continuar sendo incluída na avifauna brasileira?

São muitas as variáveis e, exceto por uma cobrança geral de mais rigor na identificação e documentação das espécies, a maioria dos trabalhos acaba optando por decisões mais “inclusivas e permissivas” a todas as questões trazidas acima, embora para quase todas elas haja argumentos igualmente válidos a favor de tratamentos mais restritivos. Entretanto, fica claro que diferentes listas podem ser construídas para um mesmo lugar e com base nos mesmos dados, e que duas listas quaisquer comumente possuem diferentes critérios de inclusão de espécies.

Liberdade taxonômica – afinal, o que é uma espécie?

Um aspecto tão ou mais importante do que os critérios de inclusão de espécies numa lista é a definição de quais e como as populações de aves serão reconhecidas como espécies independentes. Isso não é um problema exclusivo de listas, mas é uma das questões universais da biologia: o que é uma espécie?

A discussão é antiga e está longe de ter um final (o capítulo mais recente me parece ser um interessante e bastante recente artigo discutindo novamente as bases filosóficas e operacionais do que é uma espécie). Na ornitologia há diferentes propostas de conceituação e mesmo de operacionalidade (ou seja, uma vez definido filosoficamente o que é uma espécie, como podemos reconhecê-las na natureza). Diferentes autores possuem visões bastante únicas e pessoais do que é uma espécie e acabam adotando diferentes propostas. Discute-se, por exemplo, se duas populações relacionadas serão reconhecidas como variação de uma única espécie ou como duas espécies diferentes, e isso afeta diretamente o número final de uma lista de espécies de um lugar.

O CBRO adota uma definição de espécies que tende a reconhecer mais populações como espécies independentes, comparado com o tradicional “conceito biológico de espécies” adotado por muitos autores. Há propostas (interessantes!) ainda mais discrepantes (em termos de números finais) para alguns outros países, como o México (ver aqui e aqui). Mas, conforme falado no início desta seção, uma coisa é o conceito teórico, outra é a aplicação desse conceito, que pode divergir mesmo dentro de uma mesma filosofia do que é uma espécie, já que diferentes autores julgam de maneira diferente os dados disponíveis sobre a independência evolutiva de uma população. Não surpreende portanto, que as quatro principais listas globais de aves (ou seja, listas de todas as espécies de aves existentes no mundo) tivessem diferentes tratamentos a várias populações e, por conseguinte, diferentes números finais de espécies. Justamente pra evitar tais discrepâncias é que os responsáveis por gerar todas essas quatro listas juntaram esforços para produzir uma lista única, “consensual” das aves do mundo (a ser lançada em 2024). Cabe ressaltar aqui que nenhuma das quatro listas (ou qualquer outra lista que divirja por optar por diferentes conceitos e aplicações de critérios de definição de espécies) está “mais correta” do que outra. Tal como os critérios de inclusão discutidos acima, a definição do que configura uma espécie também é, em boa medida, uma questão de escolha pessoal, com bons argumentos a favor e contra cada escolha.

As diferentes fontes de informação e a validade de comparações

Voltemos então à postagem do COAP. O primeiro ponto a se questionar é o termo “oficialmente”. Simplesmente não existe uma autoridade mundial que defina o número de espécies de aves de cada país e que poderia, portanto, “chancelar” os números do Peru ou de qualquer outro país. O que existem, comumente, são comitês ou grupos afins dentro de cada país que avaliam os dados disponíveis para definir uma lista de aves ocorrentes naquele país (podendo a lista ser oficialmente reconhecida pelo governo ou não). Tanto o Peru quanto a Colômbia (mais recentemente) e o Brasil – países tidos como os mais ricos em espécies de aves – possuem tais comitês.

E quais são os números? Peru: 1879 espécies; Colômbia: 1966 espécies; Brasil: 1971 espécies! Então o Brasil é o país com mais espécies de aves no mundo? Na verdade não!! Conforme comentado antes, o CBRO utiliza um conceito de definição de espécies que tende a reconhecer mais populações como sendo espécies plenas. Conforme eu disse, é preciso que os critérios de inclusão e os de definição de espécies sejam os mesmos! Os comitês peruano e colombiano seguem a classificação taxonômica do South American Classification Committee (SACC) e, portanto, seus números são diretamente comparáveis, ao contrário do Brasil. Mas, repetindo o que venho falando desde o início, é preciso que os critérios de inclusão sejam os mesmos. Enquanto o Comitê peruano contabiliza apenas espécies documentadas, o comitê colombiano (CCRO) admite também em sua lista as espécies com registros apenas visuais e mesmo aquelas tidas como incertas (cuja identificação ou origem da documentação não é permite assegurar sem questionamento sua ocorrência na Colômbia; n = 10 espécies). Assim, caso se contabilizem as espécies hipotéticas de ambos os países, o Peru teria 1913 espécies ante 1956 na Colômbia (e Brasil com 1873, dentro da mesma classificação do SACC [e não do CBRO]); caso se contabilizem apenas as espécies devidamente documentadas, ainda assim a Colômbia supera o Peru com 1896 vs. 1879 espécies (e 1859 no Brasil). Mas então por que a postagem do COAP citava que o Peru havia superado a Colômbia? Porque a fonte de informação utilizada para comparação no texto do Boletin UNOP não tinha sido a lista mais recente da Colômbia, e sim uma lista de 2018 disponível no site do SACC.

Conclui-se portanto que, utilizando as fontes de informação mais recentes disponíveis e ante os mesmos critérios taxonômicos e de inclusão de espécies, a Colômbia seria o país com a maior riqueza de espécies de aves no mundo, seguido por Peru e Brasil (e Indonésia). Mas talvez o mais importante nisso tudo seja reconhecer que todos esses países (e alguns outros mais) são equivalentemente admiráveis por albergarem uma megadiversidade de espécies de aves, e que isso traz uma enorme responsabilidade a seus cidadãos. E é exatamente isso que fala Echeverry-Galvis et al. (2022) sobre a lista da Colômbia: Más allá del número de especies, lo que sin duda produce un gran orgullo y responsabilidad, la información en esta actualización del listado de aves de Colombia refleja el trabajo sólido de una comunidad ornitológica en unión con observadores de aves y comunidades locales que están interesados en contribuir a la ciencia como base para la conservación de la avifauna nacional.


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Observações finais:

  • esta é a realidade hoje (janeiro/2024). Com o avanço dos estudos, talvez Peru, Brasil ou mesmo Indonésia possam vir a ser o país com o maior número de espécies, embora a minha opinião é que a Colômbia tem sim o maior potencial pra ser sempre o país com a maior riqueza de aves.

  • Birdlife possui resultados similares, embora com números cuja origem é difícil traçar.


Notas:

  1. Por definição, quando o limite político é um rio, seu traçado segue sempre o álveo (ou rego), que corresponde ao ponto mais profundo desse rio. Mas quem registra aves e outros seres sabe e é fiel a essa definição?

  2. A maioria das pessoas tende a concordar que colônias de guácharo em cavernas cuja entrada estão na Venezuela, mas cujas galerias adentram no subterrâneo do território brasileiro, seriam registros legítimos pro Brasil.


Bibliografia

Bege, L. A. R. & Pauli, B. T. (1990). Two birds new to the Brazilian avifauna. Bull. Brit. Orn. Club. 110(2): 93–94.

Brito, G.R.R., Nacinovic, J.B. & Teixeira, D.M. (2013). First record of Redwing Turdus iliacus in South America. Bull. Brit. Orn. Club. 133(4): 316–317.

Echeverry-Galvis, M.A., O. Acevedo-Charry, J. E. Avendaño, C. Gómez, F.G. Stiles, F.A. Estela & A.M. Cuervo. (2022). Lista oficial de las aves de Colombia 2022: Adiciones, cambios taxonómicos y actualizaciones de estado. Ornitología Colombiana 22: 25-51.

Lees, A. & Gilroy, J. (2021). Vagrancy in birds. Christopher Helm, London, 400 pp.

Maddison, W. P., & Whitton, J. (2023). The Species as a Reproductive Community Emerging From the Past. Bulletin of the Society of Systematic Biologists, 2(1), 1–35.

Navarro-Sigüenza, A.G. & Peterson, A.T. (2004)An alternative species taxonomy of the birds of Mexico. Biota Neotropica 4: 1-32.

Pacheco, J.F., Silveira, L.F., Aleixo, A. et al. (2021). Annotated checklist of the birds of Brazil by the Brazilian Ornithological Records Committee—second edition. Ornithol. Res. 29, 94–105 (ver em publicações)

Peterson, A.T. & Navarro-Sigüenza, A.G. (2009) Constructing check-lists and avifauna-wide reviews: Mexican bird taxonomy revisited. Auk 126(4): 915–921.

Ugarte, M., Angulo, F. & R. Gutiérrez (2023). Actualización de la lista oficial de aves del Perú. Boletín de la Unión de Ornitólogos del Perú (UNOP), 18(1): 8-16.

Vítor Q. Piacentini
Vítor Q. Piacentini
Professor Adjunto

Meus interesses de pesquisa incluem taxonomia, sistemática e biogeografia de aves neotropicais, nomenclatura zoológica, inventários ornitológicos.