Bem-vindo. E quem é o passarinho da Logo?
Este é o post inaugural do site do Laboratório de Ornitologia, ou simplesmente OrnitoUFMT / Piacentini Lab. Como tal, achei que cabia começar explicando a logo. Afinal, que ave está representada e por que ela foi escolhida?
Este é o post inaugural do site do Laboratório de Ornitologia – OrnitoUFMT/Piacentini Lab. Como tal, achei que cabia começar explicando a logo. Afinal, que ave está representada e por que ela foi escolhida?
A logo foi criada a seis mãos, a partir de um conceito geral meu e com orientações e direcionamentos do Renato Rizzaro (da Roda de Passarinho), que também estabeleceu as fontes, e outras orientações e execução final da Júlia Montesanti.
E que ave seria essa? Existe no Cerrado uma ave que faz uma exibição muito característica e diagnóstica, erguendo as duas asas enquanto canta, que é o suiriri-da-chapada, nome científico Guyramemua affine. E por que eu escolhi essa espécie pra logo? Simples: por toda a história dela na ornitologia!
Até a virada do século essa espécie sequer era reconhecida. O suiriri-da-chapada é morfologicamente muito similar às populações centro-setentrionais (que possuem ventre amarelo) do suiriri-cinzento, com quem co-ocorre, e as duas espécies foram tratadas como uma só. Mas alguns ornitólogos notaram justamente que havia dois padrões de voz e comportamento, e que os indivíduos que possuíam um dos padrões não reconheciam (e não respondiam a) o outro padrão, indicando que eram duas espécies distintas. Assim, em 2001, foi publicado um trabalho de taxonomia, baseado especialmente em dados de bioacústica e comportamento, descrevendo o suiriri-da-chapada como uma espécie nova para ciência, nomeada Suiriri islerorum. E a “pátria típica” da nova espécie (ou seja, o local de onde provém o espécime que serve de referência científica para a nova espécie) é aqui nos arredores de Cuiabá [nossa sede!], mais precisamente a Chapada dos Guimarães. A extrema semelhança morfológica, num possível caso de mimetismo (será?), impediu que a espécie tivesse sido reconhecida antes, mesmo que hoje saibamos que já havia material do suiriri-da-chapada disponível em museus e coleções científicas de mais de um século atrás.
A propósito, recentemente descobriu-se mesmo que entre esses exemplares previamente não reconhecidos do suiriri-da-chapada estavam dois que serviram de base (os “síntipos”) para a descrição de um táxon novo em 1856, de nome “Elaenea affinis” [subsequentemente reconhecido como sendo do gênero Suiriri]. Por equívoco (fruto da semelhança morfológica), a então nova ave não foi reconhecida como espécie distinta dos Suiriri de barriga amarela e, após uma revisão em 1955, seu nome foi tratado como subespécie do suiriri-cinzento. Só que, pelas regras de nomenclatura zoológica, como hoje sabemos que o affinis e o islerorum foram descritos baseados em indivíduos que pertencem a uma mesma espécie (distinta dos suiriri-cinzento), o nome válido dessa espécie distinta é o mais antigo entre eles. E foi por isso que, a partir de 2014, com a divulgação desses fatos, o nome científíco do suiriri-da-chapada mudou para Suiriri affinis.
É complexo e não muito linear, mas o pior é que a confusão não parou aí. Meu colega e amigo Leonardo Lopes, que se tornou um dos maiores conhecedores da biologia do suiriri-da-chapada, resolveu avaliar a história evolutiva da espécie a partir de dados moleculares. E o que ele descobriu é que, contrariando o entendimento inicial (com o reconhecimento de duas espécies em 2001), os dois suiriris do cerrado não são diretamente aparentados. Mais do que isso, eles sequer pertencem à mesma subfamília de papa-moscas! Os resultados das análises genéticas mostraram que o suiriri-da-chapada é portanto uma linhagem muito distinta e, para acomodar isso dentro de uma classificação biológica coerente, Lopes e colaboradores publicaram em 2017 um trabalho de sistemática propondo um novo gênero pra espécie: Guyramemua, que etimologicamente significa “a ave que engana” [os ornitólogos]. Desde então, e incorporando ainda mais um detalhe nomenclatural (de concordância gramatical!), o nome científico do suiriri-da-chapada passou a ser Guyramemua affine!
Resumindo tudo: exemplares do suiriri-da-chapada estavam representados em coleções científicas desde ao menos metade do século 19, incluindo os tipos do nome affinis, mas por engano se imaginou que eram todos apenas exemplares da população de barriga amarela do suiriri-cinzento. Em 2001 se demonstrou que havia duas espécies com canto e comportamento distintos entre as aves de barriga amarela, sendo o suiriri-da-chapada (re)descrito como espécie nova, quando na verdade quem precisava de nome novo eram os suiriri-cinzentos de barriga amarela, que sempre foram (equivocadamente) chamados de affinis. O erro de aplicação do nome affinis foi corrigido em 2014, mas só em 2017 se resolveu a relação evolutiva entre as duas espécies, culminando no nome científico Guyramemua affine.
Vemos, em conclusão, que a geografia e o ecossistema do suiriri-da-chapada, evidenciados nos parágrafos acima, estão diretamente ligados ao local e bioma onde se localiza o nosso laboratório. E a história recente dessa espécie envolve trabalhos que lidam com as principais linhas de pesquisa e métodos (em negrito ao longo do texto) abordados por mim e pelos alunos do ainda novo Laboratório de Ornitologia da UFMT / Piacentini Lab (e mesmo temas secundários com os quais já trabalhei, como mimetismo, também aparecem na história da espécie).
Bibliografia de apoio
Kirwan, G.M.; Steinheimer, F.D.; Raposo, M.A.; Zimmer, K.J. (2014). Nomenclatural corrections, neotype designation and new subspecies description in the genus Suiriri (Aves: Passeriformes: Tyrannidae). Zootaxa 3784: 224–240.
Lopes, L.E.; Chaves, A.V.; Mendes de Aquino, M.; Silveira, L.F.; dos Santos, F.R. (2017). The striking polyphyly of Suiriri: convergent evolution and social mimicry in two cryptic Neotropical birds. Journal of Zoological Systematics and Evolutionary Research 56: 270–279.
Zimmer, K.J.; Whittaker, A.; Oren, D.C. (2001). A cryptic new species of flycatcher (Tyrannidae: Suiriri) from the Cerrado Region of Central South America. The Auk 118: 56–78.